18.5

PARA BEA*, CURITIBA
Ele chegou no trabalho, com o cheiro do novo nas roupas. Arrumou a mesa, conferiu o aroma do perfume e iniciou seu dia, mais alegre que de costume. Um sorriso interno, de felicidade disfarçada, uma alegria invisível aos outros, era assim que se sentia. Afinal, aquele era o dia de seu aniversário.
Os colegas da repartição foram chegando, cada um portando seus cumprimentos formais, comuns e diários. Ninguém notou a roupa, ninguém sentiu o perfume. Ninguém viu e Gusta resistiu à indiferença, se escondeu mais um pouco por de trás dos óculos e começou a trabalhar, meio sem jeito, atrapalhado por dentro. Na verdade não sabia bem o que esperar daquele dia. Era um dia especial, sem dúvida; mas, para quem, além dele mesmo? Não gostou do que pensou. Continuou a enganar seus sonhos, trabalhando, trabalhando.
Hora do almoço; marcou com o velho amigo que não pode ir. A solidão parece até que gosta mais dads horas de almoço. O paladar é u prazer comum, fácil de dividir com qualquer um, esse "qualquer um" que não está ali, que não existe mais nesse tempo.
Hoje, Gusta, não está certo se ainda é bonito, como lembra uma menina lhe ter dito um dia. Só que já desconfia não ser mais, Garotas e mulheres cruzam seu caminho sem deter olhares sobre ele.
Mas, se olhassem, o veriam? -- se pergunta, já voltando para o trabalho. Será que veriam o homem inteligente e sensível que sempre foi e que a idade só emoldura isso? Será que perceberiam que cada gesto de carinho emprestado ao mundo vinha, não só do coração, que dava vida àquele corpo, mas também da alma, que é uma parte do universo? E que essa alma não envelhece, que não fica enrugada, nem se cansa de amar? E enquanto escovava os dentes, Gusta se olhava no espelho com algum espanto. Olhos vívidos, alegres, embora molhados pelas lembranças. Trabalhou pelo resto da tarde assim, calado, meio vazio, sem graça, nublado.
De volta a casa, remexe papéis e tenta arrumar uma ou outra gaveta, com ose isso o ajudasse a re-arrumar a vida. Joga um papel fora, ressuscita uma caneta de brinde, encontra uma foto. Velhos amigos, sorridentes, numa pose típica dessas de propagandas de creme dental.
Entre eles, um velho amor. Na verdade, um grande amor, razão principal por aquela foto estar ali. Onde estaria aquela gente? O que foi feito de cada um deles? Lembrou que tinha outras fotos guardadas em alguma gaveta, pedaços de vida congelados, momentos eternizados. Resolveu reencontrá-los, a todos.
A cada foto uma volta no tempo, um sorriso solitário e a lembrança de com oeram bons aqueles amigos, aqueles lugaresm aquela época. Tinha o Zuza, que era conhecido como o Bonitão da turma, era quem comandava as ações. O Edward, inocente, meio sem-vergonha e chorão, mas de quem todos gostavam, mais pelas trapalhadas em que se metia e que divertia o grupo todo, que pelas suas qualidades -- Eles nõ reparavam muito, ou não revelavam, sei lá...
O "Ovo", meio rico e vagabundo, compositor talentoso, mas que viajava demais e se afastava demais e ainda assim é amigo melhor e compadre, esse é familia. Foto rara, aquela em que aparecia o Shimisu, misto de humorista, mímico e lutador de caratê. Ou era o contrario? Foi esquecido pela turma das garotas depois de intimidar Patricia para fazer sexo. Mas ela quis, e ele conseguiu perder a virgindade.
"Nunca fomos santinhos, mas tinhamos um códico de ética mais ou menos rigoroso" -- Pensava ele. Ah! esse aqui... Qual era o nome dele? Chimoo? Isso! Era Chimoo! Meo! quanto tempo?! Era o poeta da turma... Gusta lembrou um apanhado de Chimoo, que guardara em algum lugar. Lembrava trechos, mas uma frase nunca esquecera:
"Assim que você chegar, pode me acordar; você não vai interromper o meu sonho..." Puxa, isso era perfeito! E até hoje emociona...
(Suspirou).
Gusta tinha o habito de guardar albuns velhos em ordem cronologia. E ali, surgiam outros personagens e outros momentos, dos muitos momentos que se tem na vida. A cada foto, uma história contada, em câmera lenta, quadro a quadro. A formatura na faculdade de engenharia química, o casamento de Ovo, o batismo de fabiane, a sua separação de Lee Oliver, no embarque à Saragosa, a enorme saudade dos anos sem vê-la. Gusta chorou.
Chorou sua solidão, sua falta de amor, chorou pela enorme dó que sentia de si; as lágrimas dissolviam sem aniversário, essa resposta implacavel do tempo a existencia humana e que, para dissimula-lo, inventam-se comemorações de todo tipo. Por que diabos estaria ali, sozinho, diante da vida, obrigado a responder as perguntas que brotavam la dentro do peitom quais geiseres fumegantes, como se isso fosse um teste que o capacitasse viver por mais alguns minutos?
A ele, que amou tanto e a tantas, a vida não poderia reservar um canto menos discreto, sem esse maldito silêncio na alma?
Afinal, são todas iguais mesmo, calhordas, cínicas, mentirosas, inseguras, seus interesses insanos... ninfas... imorais... Sujas... Enquanto pensava na melhor classificação para a grande maioria das mulheres que conhecera, Gusta esboçava um sorriso.
"Sacripantas, boçais, acéfalas..." E ria, nun riso misto de gozação e vingança, pensando nessas mulheres, essas grandes tolas, tolices, como sendo as unicas responsaveis por aqueles momentos vagos, espaçosos, aquele hiato de vida, átono e descolorido.
Ainda com o album nas mãos, uma imagem chama sua atenção: não se lembra quem, mas alguém conseguiu registrar seu largo sorriso de anos atrás. Quantos anos? Não muitos; não faz tanto tempo assim. Mas quem é o cara desse sorriso de onde vem essa alegria, gratuita, franca, tão distante e tão familiar?
Parece um sorriso de quem já foi feliz... Não.
Parece um sorriso de quem é feliz.
Quem ri desse jeito não se deixa vencer na vida: vence a vida!
Num susto, ele percebe que foi enganado. Enganou a si mesmo e por um bom tempo. Nunca perdeu nada, jamais foi derrotado. Apenas trocou com a vida, numa existência simples. E saiu lucrando. Lucrou com tudo, em toda escolha sem saber. E lucrou até quando re-encontrou Lee Oliver, em Glasgow City, com o novo acompanhante, na surpresa de descobrir-se enganado pelo antigo amigo, venceu de novo, ao sorrir com aquele ar de desprezo e que só ele sabia e podia fazer.
Não foram as mulheres as culpadas, elas nunca são.
Alias, nunca serão, se nós não deixarmos -- pensava. São muito inocentes, burras, até pra isso... Na verdade, não ha culpados nem culpa. Não há nada. Só o tempo, essa falsa grandeza, é que passou, porque achamos que passou. E o que aconteceu, aliás, o que fizemos acontecer nesse periodo, é o que conta. Os pensamentos voavam, soltos, leves e malvados. mas sinceros. Eram de tal crueza, que nem doiam mais. O que dói é a ilusão. A ilusão é a pratica de uma verdade mentirosa e irresistivel, cativante e mortal.
Gusta estava descobrindo isso. A ideia de que os outros eram os culpados por todos os seus sofrimentos era confortavel demais para ser descartada.
Mas, verdades falsificadas costumam ser insatisfatorias. Ficam minando, purulentas, dores surdas, paralisantes. Não produzem sons, não permitem sonhos, não nos deixam viver. E Gusta finalmente percebera isso, agora em prantos, depois de rompida a comporta dos equivocos, tão resistente nas almas. Esvaziou-se dos medos, das mágoas, e dos cuidados inúteis.
Acabava ali, o desuso da vida. Aos poucos, ele se recompunha. No banho morno, caudaloso, fingia arrematar a limpeza da alma. Uma roupa quase nova, adornada por um calçado simples, completava a indumentaria para aquela noite.
Gusta estava pronto pra sair. Sem nenhum plano preparado ou roteiro definidom sem glamour ou orquestra; marcara um novo encontro. Ia se encontrar com a vida, que estava por aí, em algum lugar dos seus sonhos...

E nesta noite,
Gusta sonhou.

Um comentário:

Be Lins disse...

... como suas palavras falaram tão bem:
os sonhos, as lembranças, as dores, a vida, vagam no pulsar da ampulheta.

Love, Gustaf

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