UM CONTO ABSTRATO

Faz uma hora que me sento aqui, quando me sentei aqui, nessa cadeira imunda, pensei que seria fácil escrever um conto, ao menos, esta noite. Um conto de palavras que valessem mais por sua modulação que por seu significado. Um conto abstrato e concreto como um composição tocada por um grupo instrumental; límpido e obscuro, espiral azul num campo de narcisos defronte a uma torre a descortinar um lago assombrado em que o atirar de uma pedra espraia a água em lentos circulos sob os quais nada um peixe turvo que é visto por ninguém e no entanto existe como algas no fundo do oceano.
Um conto-rastro de uma lesma também evento do universo qual a luz de um quasar a bilhões de anos-luz; um conto em que os vocábulos são como notas indeterminadas numa pauta; que é como o bater suave a espaçado de um sino propagando-se nos corredores de um mosteiro; um texto gongórico feito de literatura pura, tedioso e entorpecedor em suas frases farfalhantes, lantejoulas fúteis e herméticas, condenado por aqueles que exigem da literatura uma mensagem clara e são capazes de execrar em nome disso.
Um conto lasso e elegante como um gato roçando o pêlo na perna de uma moça que bebe à mesa de um café parisiense um licor de artemísia enquanto lê um filósofo anacrônico da existência; um conto que é como uma ponte de ornamentos num rio enevoado em cujo leito um casal se beija num bote que desliza á deriva vagarosamente. Um conto recendendo a nenúfares e jasmim, vicioso como um círculo vicioso, ás vezes agudo como um estilete que desenhasse formas sobre uma pele sem feri-la. Um conto de semântica distorcida, sons insuspeitados como o de cordas soadas pelo vento igual música do Uatki ou Smetak, ou de instrumentos balineses cujos nomes são eles mesmos música: kazar, hermang, jogagan, kempur, réong e gangsa ou mais ainda, o nome sânscrito da Tarangalila Symphonie, de Mmessiaen. Um anticonto sem psicologia, mas talvez melancólico como um estudo de piano à tarde. Um conto-jogo de espelhos a refletir ao infinito um torso de mulher no instante em que mãos lhe acariciam os seios criando a sensação de capturar uma felicidade para sempre. Serão os reflexos manifestações do corpo, ou antes a repetição infinda de imagens que se lebertaram de sua fonte?
Um conto em que espreitamas figuras mais guardadas do desejo como a menina que se trancou no armário com o menino na festa de dez anos, as mãos dadas, as respirações se misturando e os vestidos que tocam os rostos com a textura acetinada do segredo, evitando-se as palavras ou movimentos bruscos para que não avance o tempo e se separe o amor que se levará pela vida afora.
Um conto noturno com a fulguração de um sonho que, quanto mais se quer, meis se perde; é preciso resistir à tentação das proparoxítonas e do sentido, a vida é uma peça pregada cujo maior mistério é o nada. E por aqui, a tela continua vaga.

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